terça-feira, 5 de fevereiro de 2008
Texto da intervenção do Paulo Manuel Gonçalves Esperança no FSM-Penafiel, em 26 de Janeiro
ESTE NOSSO INCÓMODO
TORNADO MUNDO
Paulo Esperança
26 Maio 2007
O funcionamento em rede outorgou aos séculos 20 e 21 a descoberta das “virtudes” da GLOBALIZAÇÃO “elegendo-a” como o paradigma da resolução dos problemas internos e externos de quem manda e, supostamente, como forma de aligeirar as desigualdades que grassam no planeta.
Sejamos, por isso, claros: no início de 2008, o mundo global não está muito melhor do que estava há uns anos atrás apesar dos “Indicadores de Desenvolvimento Mundial-2007” publicados pelo Banco Mundial concluírem que a pobreza extrema diminui 21% nos últimos 14 anos.
Os números não mentem: Ignacio Ramonet, escritor e director do “Le Monde Diplomatique” Carlos Alfredo Margarinos (então Director da Organização da ONU para o Desenvolvimento Industrial), relatórios do Banco Mundial e de Portugal, de ONGDs como a OIKOS, do Instituto Nacional de Estatística, de Kofi Annan, da Unicef, da Organização Mundial de Saúde, etc., vêm-nos dizer de forma nua e crua: as 225 maiores fortunas do mundo representavam há poucos anos, um total de mais de mil milhões de euros, o equivalente ao rendimento anual de 47% das pessoas mais pobres.
Nesta senda, o património das 15 pessoas mais ricas do planeta ultrapassa o produto interno bruto total do conjunto dos países da África subsariana, em que cerca de 40% da população vive na pobreza extrema.
Em 2004, quando o globo atingia praticamente os seis biliões de habitantes, 985 milhões viviam com menos de 1 dólar por dia; 2,6 biliões com menos de 2 dólares por dia; mais de 2 biliões careciam de vitaminas e sais minerais na sua alimentação, mais de 1 bilião vivia em habitações sem as condições mínimas.
No entanto, 23% da população pertencente aos países industrializados dispõe de 86% do produto bruto mundial enquanto os cerca de 3 500 milhões de habitantes dos países pobres se conformam com os 14% restantes.
Na América Latina, por exemplo, 10% da população tem direito a um quinhão de 48% da riqueza, enquanto os 10% mais pobres detêm apenas 1,6 % da “fatia do bolo”.
Um sexto da população do planeta – cerca de 1 bilião – não tem água potável e em cada 8 segundos uma criança morre por causa da falta dela.
Milhões de menores sofrem directamente as consequências da pobreza no mundo: 134 milhões, com idades entre os 7 e os 18 anos nunca foram à escola, na sua grande maioria, raparigas. Dez milhões de crianças morrem todos os anos com doenças que facilmente se poderiam prevenir.
As mulheres, constituindo metade da população mundial, apenas têm direito a 10% da receita global, quando são responsáveis por dois terços das horas de trabalho no planeta. Uma em cada três é analfabeta e 20% sofrem de alguma violência física ou sexual. A possibilidade duma mulher morrer durante o parto é 250 vezes maior nos países pobres do que nos países ricos.
Os países, “desenvolvidos”, onde vive menos de 20 % da população do globo, são responsáveis por 90 % de todos os gastos com a saúde: os outros 10% destinam-se aos restantes cidadãos do planeta.
As relações mercantilistas baseadas na produção resultante do trabalho escravo continuam a alimentar a ostentação do poder de compra dos países ricos sendo previsível que em todo o mundo haja 27 milhões de pessoas consideradas, tecnicamente, escravas. “Há hoje mais escravos vivos do que todas as pessoas capturadas em África no tempo do comércio transatlântico de escravos. Dito de outra maneira, a população escrava é hoje maior do que a população do Canadá, e seis vezes maior que a população de Israel” escreveu Kevin Bales em “Gente Descartável”.
Por isso, não admira que cerca de 400 milhões de crianças e adolescentes continuem a produzir bens de consumo a preços irrisórios contribuindo assim para os avultados lucros de multinacionais como a Walt Disney, McDonald´s, Warner Brothers, Nike, entre outras.
No mundo actual, a miséria vai tingindo da mesma cor a maior parte do mapa do planeta enquanto o bem-estar se vai reflectindo em manchas dispersas e bem localizáveis. É o assumir de que a exploração “globalizada” é indispensável para a sobrevivência do mundo dos poderosos.
E esta sobrevivência, ou “vai a bem… ou vai a mal”!
A invasão do Iraque é disso paradigma: “viva a liberdade”… o mundo está mais seguro e mais justo como se tem visto. Mesmo os antigos “oponentes” à invasão liderada por Bush, Blair e Aznar, com o estalajadeiro Durão Barroso a servir o “chazinho”, estão, hoje, a “borrifar-se” para as consequências esforçando-se apenas em não perderem o seu lugar “á mesa da pilhagem imperial”.
É este o ponto em que estamos: “ (…) os povos do mundo confrontados com um Império mandatado pelo céu (tendo como garantia adicional, o arsenal mais formidável de armas de destruição massiva que existiram em toda a história). Aqui estamos, enfrentados a um Império que conferiu a si mesmo o direito de ir à guerra quando queira e o direito a libertar os povos de ideologias corruptas, de fundamentalistas religiosos, de ditadores, do sexismo, e da pobreza mediante a velha e provada prática da exterminação. O Império está em marcha e a democracia é o seu astuto novo grito de guerra. Uma democracia transportada até às soleiras das casas por bombas rasantes. A morte é um insignificante preço a pagar para ter o privilégio de provar este inovador produto: A Democracia Imperial Instantânea (pôr a ferver banhada em petróleo, bombardear depois) escreveu o economista Armathya Sen citado por Arundhati Roy.
Esta é a nova face visível do terrorismo legal e global e é tanto mais eficaz quanto tem por detrás de si, e dentro de si, verdadeiros “conselhos de administração clandestinos”, causadores, orientadores e legitimadores das suas decisões.
O governo americano pode estar num esforço de economia de guerra com défices incontroláveis e ser criticado por mais de metade da população mundial: até pode querer aligeirar a sua presença militar nalguns países e regiões; mas nunca o poderá fazer sem que o poder oculto da Lockeed Martin, Boeing, Northoop Grumman, Raytheon ou a General Dýnamics – principais produtores americanos de armamento – dêem autorização… e para a darem têm de lhes ser disponibilizadas outras alternativas
E isto porque, por exemplo, o volume de negócios da General Motors no ano de 2002 foi superior ao PIB da Dinamarca e o da Exxon Móbil ultrapassou o da Áustria. “As mega – empresas globais controlam 70% do comércio mundial (…). Os seus dirigentes, como os dos grandes grupos financeiros e mediáticos, detêm a realidade do poder, e através dos seus poderosos lóbis, influenciam as decisões políticas dos governos (…) e confiscam a democracia em seu proveito “ escreveu Ignacio Ramonet.
Funcionando discretamente e à revelia de qualquer legalidade vão tecendo modelares redes transnacionais que lhes permitem depois dominar os poderes de Estado; “ (…) longe de serem controlados por eles, controlam-nos e formam, em suma, uma espécie de nação que, sem base ou solo algum, fora de qualquer instituição governamental, comanda cada vez mais as instituições dos diversos países e as suas políticas (…)“diz-nos Viviam Forrester no seu “Horror Económico”.
Nesta “roleta russa” em que só os desprotegidos sofrem o efeito perverso da aposta algumas das maiores empresas multinacionais “ (…) controlam mais de 33% do património produtivo mundial sendo apenas (…) responsáveis por 5% do emprego directo “ o que lhes permite a deslocalização da exploração e do roubo deixando depois aos estados nacionais a resolução dos inevitáveis conflitos laborais, étnicos ou bélicos, avisou Naomi Klein.
Estas “máquinas sem rosto” vão decidindo se a Coreia do Sul deve comer “biqueirão” ou “petinga" ao pequeno – almoço ou se a República Dominicana deve exportar alface para o Haiti. “Os banqueiros de Wall Street e os líderes dos maiores conglomerados de empresas estão por detrás destas instituições globais. Reúnem regularmente à porta fechada com o FMI, BM e OMC bem como em inúmeros pontos de encontros internacionais. Nestas reuniões e sessões de consulta participam igualmente os representantes de poderosos grupos de pressão de empresas globais, tais como a Câmara Internacional de Comércio, (CIC), o Diálogo de Negócios Transatlântico (DNT), o Conselho de Comércio Internacional dos EUA, o Fórum Económico Mundial de Davos, o Instituto Internacional de Finanças (IIF) (…) avisa-nos Michel Chossudovsky na sua “Globalização da Pobreza “ e também outras “coisas” semi – secretas como a Comissão Trilateral, o grupo Bildeberg e o Conselho para as Relações Estrangeiras.
Sejamos, de novo, claros: no mundo dos nossos dias a sociedade transmutou-se sem qualquer valor ético ou humano, fundindo-se vergonhosamente com poderosas redes “mafiosas”, violentas e de “vale tudo”.
Naturalmente que este “cantinho à beira mar plantado” não é inodoro nem incolor, muito menos asséptico. Afinal, estamos no pais em que, despudoramente, até o actual Presidente da Republica “se sente envergonhado pelo facto de Portugal estar entre os países mais pobres da União Europeia”, esquecendo-se de apontar algumas das causas, das quais também é responsável.
O poder de Estado, em Portugal, em nome de discursos economicistas e bacocamente herméticos, habituou-se a debitar deficits, previsões e novas miragens de oásis. Sem árvores para “alçar a perna” vai-se limitando a imitar os “cães de guerra” reproduzindo as onomatopeias dos “líderes da matilha”. Quase consegue fazer inculcar na cabeça do cidadão comum que, apesar das dificuldades, os bens de primeira necessidade estão menos caros, que o poder de compra dos salários tem subido e que, enfim, a vida está melhor para todos.
É o princípio do “disco riscado” cuja cópia pirata acaba por se tornar em original.
Dizem os analistas encartados que nas últimas três décadas a economia portuguesa foi das que mais cresceu na média europeia. Provavelmente com razão porque os resultados são visíveis.
-O Estado passou a apoiar algumas instituições vocacionadas para a ajuda aos sem – abrigo que, por sistema vão aumentando, contribuindo para o radioso florescimento da “ sopa dos pobres”;
-O Rendimento Social de Inserção e o Complemento Solidário do Idoso, tapa alguns buracos e serve para evitar o limiar da desgraça;
-Há pelo menos 200 mil pessoas com fome em Portugal e a Santa Casa da Misericórdia distribui a carenciados quase quatro milhões de refeições por ano;
-Fecham hospitais, maternidades, urgências e outros instrumentos de saúde: os bombeiros são os novos parteiros do século 21; isto, claro, para quem não puder recorrer à medicina privada ou não viver perto da fronteira com Espanha.
Trinta e quatro anos depois de Abril, no país das “novas oportunidades”, 1 em cada 5 portugueses vive no limiar da pobreza, 12,4% da população activa ganha o salário mínimo nacional, perto de 40 % dos jovens continua a abandonar precocemente a escolaridade ainda que os diplomas surjam a esmo só para cumprir normas europeias.
Um estudo do INE revelava recentemente que, em Portugal, a pobreza subjectiva atingia cerca de 35% da população masculina e 44% da feminina. 26,3% dos reformados recebe menos de 250 euros mês.
E, no entanto, também neste país da globalização importada, as 100 maiores fortunas representam 17% do PIB. Portugal era (antes do último alargamento) o que tinha a pior distribuição de riqueza no seio da União Europeia com 20% dos mais ricos a controlarem 45,9% do rendimento nacional.
O lucro dos 5 maiores bancos portugueses subiu 23% em 2006 crescendo quase 30% relativamente a 2005.No primeiro semestre de 2007 ganharam 8,7 milhões de euros por dia.
Neste país de programadas assimetrias o Estado impede a consolidação das pequenas comunidades rurais, locais e regionais afastando crianças do seu habitat e da sua cultura própria dando-lhes em troca um terço da sua vida diária passada em autocarros entre casa e a escola.
Menosprezando o “interior”, Portugal, tendo uma densidade populacional inferior a países como a Holanda, tem adoptado um nível de concentração urbana muito maior, fazendo com que em 2015, cerca de 45,3 % da sua população esteja previsivelmente fixada na zona da Grande Lisboa.
O que aqui vos deixei é um retrato “a la minute” do mundo e do país que resultou dos sonhos nascidos na luta de muitas gerações. Tomamos, finalmente, consciência que afinal, o futuro não era agora. Será possível, por isso, um outro mundo e um outro país, no meio deste incómodo que quotidianamente nos vai corroendo a “carne e os ossos”?
Claro que será possível um novo mundo e uma nova forma de vida em Portugal quando os seres humanos perceberem que a “democracia musculada” deste Estado, o capitalismo global e estes números, existem porque nossa lassidão e o nosso fatalismo, são o seu grande suporte. Quando a boa globalização, a globalização da luta dos oprimidos e explorados puder ser planetária e eficaz, as coisas, então sim, aí vão ter de mudar.
Mas para isso, terão de ser esses explorados e oprimidos, os homens e as mulheres destes números a quebrarem as suas próprias grilhetas porque senão…o mundo global da ostentação e do parasitismo irá continuar a organizar muitos congressos de reflexão mas de nenhuma acção.
Termino citando-vos Harold Pinter no seu discurso de aceitação do Prémio Nobel da Literatura, em 2005:
“Quando olhamos para um espelho pensamos que a imagem que nos enfrenta é exacta. Mas se nos movemos um milímetro a imagem muda. Estamos na verdade a olhar para um interminável leque de reflexos. Mas algumas vezes temos que estilhaçar o espelho – pois é do outro lado do espelho que a verdade nos olha.
Creio que, apesar das enormes dificuldades que existem, é necessária uma firme, inquebrantável, feroz, determinação intelectual, como cidadãos (…) Se tal determinação não estiver incorporada na nossa visão política, nunca teremos esperança de restaurar o que está quase perdido para nós – a dignidade do ser humano.”
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