Padre Mário de Oliveira
19 JANEIRO 2008 – No Fórum Social Mundial em Penafiel
Hoje, pelas 16 horas, vou estar no Café Sociedade, na cidade de Penafiel, a debater com outros convidados, elas e eles, a Pobreza. A iniciativa decorre no âmbito do Fórum Social Mundial, neste caso, local, mas em articulação com o Mundial. Confesso que vou com alguma relutância. Porque a simples existência da Pobreza em massa e de pobres em massa é uma aberração, um crime que nunca deveria ter começado a existir à face da terra. Mas que não só começou a existir, como ainda se mantém. Propositadamente. E todos os dias são alimentados por grandes Inteligências dementes e cientificamente organizadas. Para que atinja cada vez mais pessoas e povos. Inclusive, alimenta-se, até, com debates como este em que vou também participar, a convite dos promotores da iniciativa. Daí a minha relutância. Porque, quando mais parecemos erguer-nos contra a Pobreza, ainda estamos a contribuir para que ela se mantenha. Em matéria de Pobreza e de pretenso combate à Pobreza, somos todos uns hipócritas. Vivemos a fazer de conta. Desde logo, porque não são os pobres, as vítimas da Pobreza, que organizam o Fórum Social Mundial, nem sequer, nas suas dimensões locais, como esta aqui em curso. São minorias não-pobres - não quer dizer que sejam ricas, mas são não-pobres - e mais ou menos escolarizadas que estão na origem desta e de outras iniciativas do género. Os pobres, as vítimas da Pobreza, não aparecem. Tão pouco são convidados. Cheiram demasiado mal, são demasiado incómodos e conspirativos, para poderem entrar e estar nestes lugares reservados a eleitos preocupados com eles e com a pobreza que os exclui e mata lentamente, sadicamente. Nem sequer entre a plateia que se desloca para assistir / participar nas diversas acções que iniciativas como esta sempre conseguem pôr em marcha. Os pobres, as vítimas da Pobreza nunca estão aí. No último Fórum Social Mundial em Nairóbi, África, ainda estiveram por alguns momentos, numa tarde. Não como protagonistas, obviamente - alguma vez os não-pobres acham que os pobres são capazes de alguma coisa?! - mas apenas como objecto da curiosidade, disfarçada de solidariedade, dos participantes no Forum, idos de todo o mundo, quando os promotores da iniciativa decidiram ir de visita, como quem vai a um jardim zoológico, a um dos bairros-favela mais miseráveis e mais numerosos em habitantes por metro quadrado, nos subúrbios daquela cidade. Alguns dos participantes, os mais sensíveis, até vomitaram, perante tamanha miséria, tamanha degradação, tamanho desprezo, tamanha humilhação, tamanho crime, tamanho genocídio cometido vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas. Outros, menos sensíveis, mas mais intelectuais cerebrais, indignaram-se perante o que lhes foi dado ver e escreveram / dissertaram sobre aquela situação-espelho do nosso mundo global. Sofreram pesadelos, durante algumas noites e até durante alguns dias. Aqueles rostos da Pobreza e da Degradação não lhes saiam de diante dos olhos. Mas depressa tudo se apagou, tudo voltou à normalidade, depois que escreveram toda a sua indignação em jornais e revistas e se insurgiram com veemência contra tamanha Indignidade e tamanha Inumanidade. Os textos que produziram e as conferências que disseram sobre aquela situação e sobre a Pobreza em geral bastou para lhes trazer o sossego de volta e o sono tranquilo, sem mais pesadelos. Entretanto, o enorme bairro-favela de Nairóbi continua lá, em carne viva. O genocídio ao vivo e continuado que ele é continua lá. Os pobres aos milhões - crianças, jovens, mulheres e homens de meia-idade e outras, outros precocemente velhos (que a fome mata, senhoras, senhores; que a Pobreza mata, senhoras, senhores!) - esses continuam lá. Ignorados. Esquecidos. Cada vez em maior número e cada vez mais pobres. Cada vez mais degradados. Somos assim, duma maneira geral, os não-pobres e mais escolarizados, ou mesmo semi-analfabetos. Uns hipócritas. Vejam que até dos pobres e da Pobreza de que todos eles são vítimas, nós, os não-pobres, os mais escolarizados, tiramos proveito pessoal e corporativo. Fica bem, é de bom-tom, dá prestígio promover iniciativas como o Forum Social Mundial. E participar nelas. E debitar discursos durante elas. Somos por momentos individualidades. Locais ou regionais, porventura, mas individualidades. E fica a impressão, perante a sociedade e os nossos próprios olhos, de que somos militantes de causas, no caso, que estamos empenhados na erradicação da Pobreza. É tudo mentira. Estamos simplesmente a auto-promover-nos e a dar nas vistas, a ter alguns dos nossos cobiçados quinze minutos de fama, de que tanto necessitamos para subirmos no conceito dos que nos rodeiam, na sociedade em que nos situamos, na organização partidária ou eclesiástica em que estamos inscritos e, onde, deste modo podemos fazer carreira com mais facilidade. Perdoem-me esta rudeza, mas é isto que sucede. Porque somos não-pobres e o que mais queremos, lá no fundo do nosso inconsciente, é que este nosso estatuto de não-pobres se mantenha estável e, se possível, até suba e nós acabemos ainda menos não-pobres, por isso, um pouco mais ricos, com novas possibilidades e novos amigos, não entre os pobres, mas entre os mais ricos do que nós. Parece que queremos mudar / transformar o mundo, acabar com a Pobreza, mas só parece. O que efectivamente mais conseguimos, e é se formos intelectuais lúcidos e honestos (porque há por aí uma espécie de intelectuais dementes, corruptos, que se vendem como prostitutos ao Grande Dinheiro e ao Grande Poder, ao serviço dos quais põem o melhor dos seus saberes e das suas capacidades, num prolongamento do gesto de Judas, o traidor dos Evangelhos canónicos do Novo Testamento, ou do gesto de Caím que mata o irmão Abel, os dois personagens do conhecido mito bíblico do Génesis) é, não transformar o mundo, mas apenas explicá-lo, precisamente este nosso mundo, onde nós, os que nos envolvemos nestas iniciativas somos da imensa minoria dos não-pobres. No máximo, conseguimos explicar teoricamente porque há pobres e Pobreza no mundo. De modo algum, ousamos transformar o mundo que continua a produzir pobres e pobreza em massa, com a mesma eficiência e a mesma frieza com que produz automóveis, mobília mais ou menos bizarra, computadores, telemóveis, perfumes, detergentes e muitos outros artigos de consumo. Ou acham que podemos alguma vez acabar com a Pobreza e libertar as vítimas dela, os pobres, sem acabarmos com a Riqueza acumulada e concentrada e com o Sistema, democrático que se diga, que torna possível esta Demência, esta Inumanidade organizadas? Ora, de que adianta erguermo-nos indignados contra a Pobreza e explicar porque é que ela existe, se não nos erguemos contra a Riqueza acumulada e concentrada, nem contra nós próprios que fazemos parte da imensa minoria dos não-pobres, sempre a sonhar ser cada vez menos não-pobres, por isso, cada vez mais ricos? Acham que exagero? Quem de nós, ao envolver-se nestas pretensas causas, pomposamente chamadas por nós de luta contra a Pobreza e da erradicação da Pobreza no mundo, já se fez mais pobre? Quem já desistiu de querer ser rico? Quem já fez, por exemplo, o que Zaqueu, o do Evangelho de Lucas, fez, quando Jesus, o de Nazaré, não o das Igrejas eclesiásticas, ópio dos pobres e dos ricos, entrou na sua casa / na sua vida, e ficou uns dias com ele? "Vou dar metade dos meus bens aos pobres e dar quatro vezes mais do que roubei a todos aqueles [e muitos eram!] que roubei". Algum de nós já foi capaz de tal decisão pessoal e corporativa, partidária, associativa, eclesiástica, paroquial, mesmo entre os que nos dizemos cristãos e da Esquerda política, e militamos nela em lugares de destaque? E quem já teve a audácia de realizar a Política económica que Jesus propôs ao Homem rico - entenda-se, à imensa minoria dos não-pobres - que o procurou preocupado com questões relacionadas com a salvação eterna, depois da morte, em vez de com as questões e as aflições do quotidiano, onde estão mergulhados todos os pobres que diariamente fabricamos e onde está a Pobreza em massa, estrutural? "Vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e depois vem e segue-me". Sabem que esta palavra de ordem económica e política - a única que tem força para mudar / transformar o mundo - continua ainda por realizar e que os que a ouviram pela primeira vez, até correram a matar crucificado aquele que teve a lucidez / humildade de a captar e a audácia de a praticar / propor / anunciar? Registam os três Evangelhos Sinópticos que, ao ouvir semelhantes palavras, o Homem rico retirou-se triste, porque era possuidor de muitos bens. Pois é. Esse é o problema. Essa é a questão nuclear no que respeita à existência da Pobreza e de vítimas da Pobreza. Os detentores da Grande riqueza acumulada e concentrada e os seus inúmeros admiradores menos ricos mas já não-pobres, podem dizer-se ateus ou agnósticos, mas o que todos são, somos, é idólatras, isto é, vivemos de cócoras e de joelhos diante do Senhor Deus Dinheiro, hoje totalmente independente da Política e totalmente à solta, servido por grandes inteligências, todas dementes, sádicas e cruéis, mas cada vez mais eficientes e cada vez mais bem pagas. E, embora tristes - todo o assassino e mentiroso é triste, e assassino e mentiroso é o Grande Dinheiro e quem está incondicionalmente ao seu serviço - todos exibem ares de muita satisfação, nadam em privilégios, dominam o Mundo, mandam nos Executivos das nações, seguem exclusivamente as leis que eles próprios concebem e aprovam, sempre em mutação / adaptação, segundo a lógica dos seus interesses. Além disso, sabem-se temidos, adorados, idolatrados. E isso consegue disfarçar toda a tristeza que sentem no mais fundo de si próprios e toda a solidão em que vivem como ratos encurralados, rodeados de seguranças por todos os lados. Eu sei - Jesus também o soube melhor do que ninguém e foi já com ele que eu aprendi - que o problema não é apenas, nem sobretudo de pessoas. É estrutural. É sistémico. Ele chamou-lhe "O Pecado do Mundo". Mas também é de pessoas. Concretamente de nós, de cada uma, cada um de nós. Porque são as pessoas que podem mudar o Sistema Económico e Financeiro que hoje nos asfixia e mata e produz pobres e Pobreza em massa. Porque a existência de pobres e de Pobreza não é, como nos fazem crer, uma fatalidade da natureza. É uma opção. Económica e Política. Uma opção que, na nossa demência, não temos querido fazer correctamente e preferimos alinhar no Pensamento Único, na Ideologia / Ideolatria do Império do Dinheiro e da sua Ordem Mundial intrinsecamente perversa e assassina. Na verdade, ou todos escolhemos ser pobres, não-ricos, ou a Pobreza continuará a desenvolver-se no mundo, não apenas numa progressão aritmética, o que já seria tremendo, mas numa progressão geométrica. "Felizes vós os pobres", diz Jesus, não, obviamente, os que o são à força, criminosamente fabricados pelas nossas Economias do Dinheiro cada vez mais acumulado e concentrado. Mas os pobres que o são por opção, que escolheram ser pobres, isto é, não-ricos, por toda a vida. "Ai de vós, os ricos", acrescenta depois Jesus, aqueles que o são por opção e por escolha. Não há saída libertadora e salvadora, digna dos seres humanos e dos povos, fora desta via praticada por Jesus e anunciada por ele à Humanidade. E todas as pessoas e todos os povos temos que escolher. O Mercado, o Grande Mercado não é solução. É genocídio. A única saída é a opção pessoal e global de sermos pobres por toda a vida. É por aqui que vai o Evangelho de Jesus e o próprio Jesus e que está magistralmente descrita naquela metáfora apresentada pelos quatro Evangelhos canónicos, a metáfora viva da Partilha, não multiplicação, como repetem / mentem as Igrejas, dos pães e dos peixes. A solução da fome, da Pobreza, não passa por mais e melhor Mercado, nem por mais e melhor assistencialismo / caridadezinha, mas exclusivamente por mais e melhor Partilha da Riqueza produzida. Lê-se na referida metáfora: "Está aqui um pequeno, isto é, um que escolheu ser pobre, por isso, não-rico, e que tem cinco pães e dois peixes, o que, no total, perfazia o número sete, biblicamente, o da plenitude humana. Quer dizer: Era um Ser Humano cem por cento, não um monstro, um inteligente demente, um chico-esperto. A verdade é que foi a partir desta disponibilidade, desta Partilha - há lá gesto mais politicamente fecundo do que este?! - logo assumida por outro e mais outro e mais outro, que todos, na hora - também nesta que é a nossa hora - comem e ficam saciados e ainda sobra comida, para mais dois ou três mundos como o nosso. Deixemos, porém, a metáfora e fiquemos com a Luz Política que dela salta. E com ela, façamos Economias e Políticas nacionais, europeias e mundiais. Veremos que nunca mais haverá Pobreza, nem vítimas da Pobreza. Porque também nunca mais haverá Riqueza acumulada e concentrada, muito menos, o Grande Dinheiro que hoje anda por aí à solta, numa Obscenidade sem nome. Consequentemente, também não haverá mais ricos e pobres. Haverá seres humanos, simplesmente. E povos, todos diferentes, todos iguais. Todos irmãos e irmãs. Utopia? Sem dúvida, mas que ou nós a tornamos topia, isto é, realidade histórica mundial, ou ficamos sem Futuro. A escolha é nossa. E nem que seja tomada já hoje, saibam que, mesmo assim, peca por demasiado tardia. Mais um pouco de tempo nesta selvajaria global que é hoje o Império do Grande Dinheiro, e o processo evolutivo em marcha na História para nos tornarmos seres humanos deixará de poder prosseguir. Em vez de seres humanos acabados, como Jesus, o Paradigma de todos os seres humanos, acabaremos reduzidos a Coisas. Está nas nossas mãos escolher. Se formos como o Homem rico dos Evangelhos Sinópticos, escolhemos o Grande Dinheiro e ficaremos coisas. Ousemos, por isso, ser como aquele pequeno não-rico que Partiu os cinco pães e os dois peixes que possuía. Seremos plenamente humanos, alegres, sororais/fraternos, felizes, sem pobres no meio de nós e sem Pobreza.
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008
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